A gratuitidade dos manuais escolares está consagrada para os alunos da rede pública. O seu alargamento aos alunos do ensino privado foi proposto na Assembleia da República (por iniciativas de PSD, IL e CH) e foi chumbado com os votos contra dos partidos à esquerda (PS, PCP, BE, Livre). Não sendo surpresa, a circunstância é exemplar acerca de dois vícios do debate político, que vale a pena destacar e que talvez ajudem a explicar o nosso atraso. Por um lado, a cegueira ideológica com que se olha para o sistema educativo, escolhendo o ângulo morto que coloca a oferta pública e a oferta privada num braço-de-ferro. Por outro lado, a ignorância de quem imagina as ofertas pública e privada segmentadas por classe social — acreditando mesmo que o privado está recheado de meninos ricos. O que têm em comum a cegueira ideológica e a ignorância? Não conhecem ou percebem a realidade.

Primeiro: a regra que vigora sobre os manuais escolares contém um erro de princípio. Porquê? Porque a gratuitidade exclusiva para quem frequenta escolas da rede pública rompe com o modelo vigente de apoios na Educação. Tendo em conta a relação entre contexto social e probabilidade de sucesso escolar, os apoios do Estado na Educação estão por definição associados ao perfil socioeconómico do aluno, destinando-se obviamente aos mais carenciados e podendo ser alargados a partir deste critério. Se for essa a opção política, os apoios do Estado podem ser alargados até se tornarem universais e chegarem a todos os alunos. Contudo, o que vigora é uma terceira via: a opção de definir apoios em função da natureza institucional da escola. Ora, isto corresponde a seguir um critério incoerente, de raiz ideológica e com efeitos perversos, pois deixa famílias carenciadas sem acesso a este apoio, só porque os filhos não frequentam uma escola da rede pública — como, em 2020, a Provedora de Justiça alertou.

Segundo: a ideia de que as escolas privadas são para alunos ricos é uma fantasia. Por um lado, é evidente que os alunos da Acção Social Escolar estão esmagadoramente a frequentar escolas da rede pública — apenas 1% da dotação orçamental da Acção Social Escolar se destina a alunos da rede privada. Por outro lado, em 2021, 21% dos alunos (pré-escolar ao ensino secundário) frequentou a rede privada. Se olharmos apenas para o ensino secundário, constatamos que 1 em cada 4 alunos (24%) estava matriculado na rede privada (já agora, uma percentagem superior ao ano 2019). Ora, Portugal não é um país rico. E, por isso, a menos que se acredite numa espécie de milagre que enriqueceu um quarto dos agregados familiares com filhos, fica-se perante a evidência de que inúmeras famílias portuguesas fazem um enorme esforço económico para ter os seus filhos na rede privada — umas vezes por opção educativa, outras vezes por necessidades de natureza pessoal ou profissional (horários, serviços extra-escolares, proximidade geográfica, apoios a necessidades educativas especiais).

Terceiro: a composição social das escolas da rede pública é muito diversa. Em 2022, 358 mil alunos foram beneficiários da Acção Social Escolar, o que (simplificando) corresponde a cerca de um terço dos alunos matriculados na rede pública do básico e secundário. Dito ao contrário, tal significa que dois terços dos alunos não estão sinalizados por carências sociais e económicas. Ninguém achará que, por isso, estas são todas famílias de contextos favorecidos ou mesmo ricas. Mas algumas até o são. E frequentam escolas da rede pública que mais parecem colégios.

Acha que não? Olhe que sim. Devido às regras das matrículas, a composição social das escolas da rede pública espelha a segregação residencial existente, o que significa que, nos bairros onde a habitação é mais cara, as escolas da rede pública assemelham-se aos colégios privados mais elitistas — quase sem alunos de contextos desfavorecidos. E vice-versa: nos bairros mais desfavorecidos, a população escolar está quase toda na Acção Social Escolar (ASE). Ilustro com exemplos, a partir deste estudo da DGEEC. No distrito de Setúbal, há uma escola com 83% de alunos com apoio ASE e outra escola com apenas 17% de alunos nessa condição. No concelho de Lisboa, há uma escola com 8% de alunos com apoio ASE e outra com 78%. No concelho do Porto, mesma coisa: escolas com 16% e escolas com 87%. A rede pública única e homogénea que aparece nas caricaturas dos discursos parlamentares não existe: no seu lugar, há uma rede amplamente diversa, que também toca nos extremos — dos mais pobres aos mais ricos.

Resultado: ao discriminar os alunos em função da tipologia pública ou privada da escola que frequentam, o governo (com o apoio de toda a esquerda) aceitou o ónus de oferecer manuais escolares a ricos (da rede pública) e de os rejeitar a pobres (da rede privada). A ideologia é assim: pinta realidades complexas em tons estupidificantes de preto e branco. O preço maior será pago por alguns — aquelas famílias que se desdobram e contam os cêntimos para manter os filhos na rede privada. Mas o cinismo da esquerda parlamentar, tão disponível para sacrificar os mais desfavorecidos que não encaixam nos seus ideais, esse fica mesmo à vista de todos.

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